I I – A Política Internacional sobre Drogas Ilícitas

As drogas acompanham a espécie humana desde sempre (2), variando, apenas, a percepção que delas se tem em cada momento da história. Rosa del Omo cuidou de mapear tais percepções nos últimos cinquenta anos, permitindo-nos, agora, com algum conforto e maior precisão, destacar como a questão restoupercebida na última década do século XX (1991-2000): uso de todas as drogas (legais e ilegais), consumo pela juventude mundial, consumidor cúmplice do delinquente, tráfico operado pelas empresas multinacionais, problema de segurança global, discurso científico de saúde pública, discurso oficial com foco econômico transnacional, discurso geopolítico do inimigo global (cartéis colombianos, crime organizado internacional, máfia russa, grupos insurgentes), associações com violência, terrorismo e com destruição da democracia e do livre mercado (3).

E ainda são esses os paradigmas que orientam a atual política proibicionista de drogas, cujo reconhecido fracasso (4), expressamente previsto até mesmo por quem a elaborou (5), não impede o tremular de sua bandeira nos céus de Viena, na última UNGASS – United Nations General Assembly Special Session – 2009, anunciando mais repressão para a década seguinte.

É o máximo da teimosia; é o triunfo do obstinado propósito de eliminar um suposto inimigo que, justamente por ser suposto, jamais se esgota. Afinal, são tantas as drogas capazes de mobilizar o espírito humano que é impossível a qualquer programa criminalizante enumerá-las, sem contar ainda outras tantas que são inventadas a cada instante (6). Entretanto, os países que adotam a política proibicionista liderada pelos EUA (7) empreendem essa tola tarefa, ao arrepio da ciência (8) e da lógica jurídica (9), em franco prejuízo da liberdade individual.

* Na esteira do célebre ensaio de Nilo Batista, intitulado “Política Criminal com Derramamento de Sangue”, Salo de Carvalho elaborou precioso texto sobre política de drogas, apresentado na EMERJ, em 2013, com o sugestivo título “Nas Trincheiras de uma Política Criminal com Derramamento de Sangue: Depoimento sobre os Danos Diretos e Colaterais Provocados pela Guerra às Drogas”, inaugurando com tais “trincheiras” uma linha crítica que o presente texto ora intenciona secundar.

Curioso é que tais países assim procedem não para tutelar a saúde pública (bem jurídico ao qual se vincula a incriminação de uso e comércio de drogas ilícitas), mas sim para apetrecharem-se de uma ferramenta de tríplice utilidade, uma espécie de canivete suíço.

Como dispositivo de controle político interno , a política proibicionista mostra-se muito eficiente – em especial nos períodos eleitorais – para abortar lideranças comunitárias antagônicas, associando-as ao tráfico de drogas e, a partir dessa imputação, abalar ou neutralizar seus potenciais políticos, simplesmente mobilizando contra elas a força policial. (10); Como dispositivo de controle social interno , permite aos estados policiarem as regiões pobres sem os embaraços legais, com invasões de domicílios, exposições de moradores a perigo de morte, revistas pessoais em mulheres e crianças e execuções sumárias, sem contar as vantagens hauridas com a rapinagem de bens, armas, munições e drogas, além dos valores do arrego para o livre comércio. A política proibicionista é de enorme serventia para os estados policiais, que dela não podem (por razões externas) e não querem (por razões internas) se livrar; E como dispositivo de controle político externo , que pode ser ativado simplesmente com a polícia local, adequadamente “instruída” e “monitorada” pelas agências estrangeiras de repressão às drogas instaladas no entorno da América do Sul, que ora voltam suas baterias para a Venezuela, no início do governo de Barak Obama, sinalizando claramente que no quesito “drogas” a orientação da “matriz” não só permanece a mesma como busca uma “linha mais repressiva e dura no seu combate”, como informa Luciana Boiteux, direto da UNGASS/Viena/09 (11). Acrescente-se a esse escopo de recrudescimento a “cumplicidade” da ONU, como denunciada por Danny Kushlik, diretor da Transform Drug Policy Foundation (12).

Ainda como dispositivo de controle político externo, a política proibicionista oferece aos EUA o fundamento retórico necessário para manobrar as economias de países subalternos, permitindo-se, em nome da “war on drugs” e em defesa da saúde do mundo, descumprir convênios comerciais, impor condições leoninas em contratos de seu interesse e, até mesmo, depor presidentes, gerando desemprego, miséria e instabilidade política. Rosa del Omo cita artigo de Clliford Krauss, publicado no Wall Street Journal , de 26 de setembro de 1986, sob o título “US Sugar Quotas Impede US Policies Towards Latin America”, em que traz à colação o caso dos plantadores de cana de Belize e da Jamaica, que perderam seus empregos por conta das restrições americanas na cota de compra do açúcar e passaram a plantar maconha; a saudosa professora prenuncia o mesmo destino para os plantadores de café da Colômbia, assinalando que nisto reside a face oculta da política de drogas (13).

Entre nós, o corolário desse recrudescimento na política de drogas encontrou eco no Projeto de Lei 7663/10, de autoria do deputado Osmar Terra, que pretende alterar a Lei de Drogas (Lei 11343/2006), com escopo de aumentar a pena mínima do crime de tráfico (para oito anos), bem como as dos arts. 34, 35, 36 e 37 da Lei 11343/2006, além de ampliar o controle sobre usuários de drogas com a criação de um “cadastro” e instituir uma espécie de internação involuntária que pode ser formulada pela família, permitindo a internação de usuários de drogas ilícitas em instituições não médicas e sem controle judicial.

Para piorar – se é que isso ainda fosse possível – o malsinado projeto sugere a parceria com instituições religiosas e associações e organizações não governamentais, prenunciando magnífico benefício para clínicas privadas e comunidades ditas “terapêuticas”. Tantos defeitos fizeram dito projeto merecer editorial do IBCCRIM, em forma de verdadeiro manifesto, sob o título “Contra o Retrocesso na Política de Drogas” (14). A proposta legislativa, louvada nos mais pedestres argumentos emocionais – “... pânico moral decorrente de suposta epidemia do uso de “crack” e o aumento de usuários nas áreas carentes das grandes cidades brasileiras na véspera dos grandes eventos esportivos vindouros...” –, devora, como um canibal faminto, as mais importantes garantias individuais ligadas à liberdade, tão duramente conquistas ao longo desta nossa penosa História.

Os três dispositivos de controle acima elencados (político interno, social interno e político externo) talvez ajudem na formulação de uma resposta à instigante indagação de Olievenstein, ou seja: apesar dos enormes problemas de injustiça e de morte que invadem o mundo, falamos tanto de drogas porque o tema é útil para os países ricos, nas suas relações com os países pobres; e para os países pobres, nas suas relações com seu contingente de excluídos do processo neoliberal em curso.

Contudo, uma política de drogas sintonizada com a pós-modernidade - mais tolerante com a diversidade, como recomenda Bauman, em sua magnífica obra “Modernidade e Ambivalência” (15) - é desejável não apenas pelos juristas e criminólogos de ponta, mas também pelo senso comum, expressado entre nós, por exemplo, nos comentários de Chico Buarque (16) e Gilberto Gil (17), ou nas tintas de Nelson Motta (18), Eliane Cantanhêde (19) e Marcelo Coelho (20), certamente assim seguidos por suas respectivas legiões.

Nesse sentido, não parece demais lembrar que a Comissão de Política de Drogas do IBCCRIM, empenhada na “construção de alternativas à política proibicionista-punitiva”, faz a seguinte recomendação no quinto item da sua pauta de sete resoluções: “A não incriminação e regulamentação do cultivo, produção, fabricação e comércio de drogas deve ser encarada como uma alternativa viável (a ser objeto de exame) na construção de uma relação pacífica com as drogas” (21).

Por fim e por óbvio, a descriminalização do uso e do comércio de drogas provocaria a eliminação de caudalosa fonte de corrupção, o alívio das agências policiais, judiciais e penitenciárias, o surgimento de empregos formais, a arrecadação de novos tributos e, acima de tudo, a eliminação do medo que tanto tem assombrado gerações de comerciantes e usuários.

Autorizados autores, louvados em variadas razões, pugnam pela descriminalização do uso de drogas, como, por exemplo, Ivete Senize que afirma ser tal incriminação “incompatível com os novos estágios da civilização, v.g. adultério, sedução, aborto etc.” (22); ou Lycurgo de Castro Santos, que reivindica a inconstitucionalidade da incriminação, acusando-a de grave violação ao art. 5o. CF, que garante a todos o direito à igualdade e à inviolabilidade da intimidade e da vida privada (23); ou Fábio Roque da Silva Araújo, que assim assevera: “Não vislumbramos constitucionalidade na criminalização do porte de drogas destinadas ao consumo próprio. A uma porque se criminaliza a autolesão, a duas porque incriminar tal conduta nada mais é do que a consagração da intervenção penal em um valor exclusivamente moral... Demais disso, não há razões que justifiquem a distinção entre o tratamento conferido às drogas consideradas lícitas (cujos efeitos danosos também são comprovados) e as ilícitas” (24); ou Nereu José Giacomolle, ao lembrar que“A exposição de motivos da lei italiana antidrogas refere que na Holanda, onde se pode comprar legalmente certas drogas, consideradas leves, o preço é a metade de locais onde está proibida, como Roma e Milão, e um terço mais barata que em Berlim e Frankfurt. Em 1986, na Holanda, 18 mil morreram por causa do cigarro; 2 mil pelo uso de álcool e 64 por consumo de drogas. Dos contaminados pela AIDS, enquanto na Europa, 23% tem vinculação com o uso de drogas, na Holanda este percentual é de 1,8%. Na Itália, cada ano morrem cerca de 30.000 pessoas por abuso de álcool” (25); ou, por fim, Kai Ambos, ao assegurar que “... uma análise objetiva resulta no reconhecimento de que os argumentos em favor de uma legalização controlada prevalecem sobre os argumentos em contrário, sendo eles assim elencados: Argumento liberal: os bens jurídicos supostamente tutelados não emprestam legitimação suficiente para repressão penal do consumidor de drogas ilegais. Dada a não-punibilidade da autolesão, conseqüência da garantia da liberdade individual, a criminalização da posse e da aquisição para consumo próprio é uma contradição; Argumento político-criminal: a criminalização do consumo gera os altos preços que levam o consumidor a cometer atos criminais para financiar seu consumo –criminalidade vinculada ou associada. Nos países produtores a política de repressão gera formas especiais de violência como o narcoterrorismo e a narcoguerrilha; Argumento econômico : a proibição acarreta a inflação do preço (...) a repressão generalizada provoca o chamado crime tariff (Packer), ou seja, os custos de risco para os que participam do negócio são pagos, ao final, pelo consumidor; Argumento social: o consumidor não deve ser tratado como autor de crime, mas sim como vítima, cuja reintegração social é a única maneira de evitar sua marginalização social. Um controle estatal da qualidade das drogas evitaria danos à saúde; Argumento cultural : deve-se pensar, sem pressa, um manejo racional e adequado com as drogas não tradicionais; Argumento contrário: incremento do consumo (É duvidoso sacar essa conclusão das elevadas taxas de consumo de álcool e nicotina; Não existem experiências que nos dêem certeza do que acontecerá a partir da legalização com o consumo das drogas ilegais. As experiências norte-americanas e européias referem-se a drogas leves, como haxixe e maconha; O perigo à saúde pela cocaína é muito discutível. Os chamados “mortos por droga”, que nos países consumidores são sempre citados para justificar a proibição, não morrem, na maioria dos casos, por uma dose pura e adequada, mas sim por uma overdose ou em razão das “drogas batizadas”. No caso da cocaína, não se conhece nenhum caso em que a morte foi causada por uma “dose pessoal”, mas sempre por misturas e/ou abuso na dose (26).

Entretanto, a adoção de uma política diversa da proibicionista depende do cumprimento, ao menos, de duas condições: o convencimento dos empresários morais do país subalterno e a disposição dos EUA em modificar de ponta-cabeça sua política de drogas. A primeira condição pode ser satisfeita com publicação de textos e realização de simpósios, mas a segunda é de imponderável satisfação porque diferentemente da primeira – que diz respeito a uma relação entre escritor e leitor, palestrante e simposiasta – está ligada aos interesses maiores do capitalismo globalizante neoliberal, senão pelo grande volume de dinheiro envolvido no comércio de drogas ilícitas (valores não rastreados pelo sistema bancário), como também pelo grande volume de dinheiro desperdiçado na suarepressão (valores agasalhados pelo sistema bancário).

Apesar das enormes dificuldades para satisfação das condições acima apontadas, qual seria a missão daqueles que pretendem livrar as próximas gerações desses controles sinistros? Vera Malagutti Batista assim responde: “A tarefa principal dos que pensamos as questões da criminalidade, das drogas e da violência na periferia do capitalismo é estabelecermos a nossa própria pauta. Nossa reflexão tem que romper com os estereótipos que nos foram conferidos pelo capital vídeo-financeiro, pela mass-midia. Queremos uma nova pauta: novos destinos para a nossa juventude pobre que não sejam a cadeia ou o extermínio” (27).

Parece razoável que agora se reclame a existência dessa nova pauta para nela embutir uma política libertária de drogas, não para se contrapor à política proibicionista vigente nem para insultar seus seguidores, mas sim para expressar a vontade do grupo sul-americano, integrado por países que se pretendem soberanos e independentes.

 III – Panorama sintético da Lei 11343, de 23 de agosto de 2006

  • 28: uso pessoal: advertência, psc, medida educativa (programa ou curso) por até 5 meses (primário) e 10 meses (reincidente);
  • 28, p. 1º: plantio para uso pessoal: advertência, psc e me;
  • 33: tráfico: r. 5/15 + m (18 verbos);
  • 33, p. 1º, I: tráfico de insumos: r. 5/15 + m (14 verbos);
  • 33, p. 1º, II: plantio para tráfico:r. 5/15 + m (3 verbos);
  • 33, p. 1º, III: utilização de local para tráfico: r. 5/15 + m;
  • 33, p. 2º:induzimento ao uso: d. 1/3 + m;
  • 33, p. 3º: uso compartilhado: d. 6m/1 + m + advertência, psc e me;
  • 34: posse de maquinário: r. 3/10 + m (11 verbos);
  • 35: associação para o tráfico (reiterada ou não): r. 3/10 + m;
  • 35, p. único: associação p/ financiamento de tráfico (reiterada): r. 3/10 + m;
  • 36: financiamento de tráfico: r. 8/20 + m;
  • 37: colaboração com o tráfico: r. 2/6 + m;
  • 38: prescrição culposa: r. 6m/2 + m;
  • 39: direção perigosa de embarcação ou aeronave após uso de droga: d. 6m/3 + apreensão do veículo + m cassação da habilitação;
  • 40: causas de aumento de pena (qualificantes) para o tráfico (33 a 37): acréscimo de 1/6 a 2/3:
  • 40, I: tráfico internacional;
  • 40, II: função pública, de educação ou de vigilância;
  • 40, III: dependências ou imediações de escolas, clubes etc. (15 adjuntos adverbiais);
  • 40, IV: uso de arma;
  • 40, V: tráfico interestadual;
  • 40, VI: criança ou adolescente, ébrio ou débil mental;
  • 40, VII: financiamento de tráfico;
  • 41: delação premiada: redução de 1/3 a 2/3.

 

IV – Críticas à Lei 11343, de 23 de agosto de 2006

O artigo primeiro da lei em comento cria o Sisnad – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas –, subordinado ao Conad – Conselho Nacional Antidrogas –, por força do art. 4º, inciso XI, da mesma lei, construindo uma estrutura pública gigantesca, hierarquizada em inúmeros colegiados, com uma tábua de princípios demasiadamente genéricos e atribuições claramente inexequíveis.

Nesse sentido, o artigo terceiro comete ao Sisnad a missão de “... articular, integrar, organizar e coordenar atividades relacionadas com prevenção do uso e repressão do tráfico de drogas”, em todo país. Como o Sisnad cometeria tamanha proeza, considerando a imensidão de nosso território e as inúmeras agências (regionais, municipais, estaduais, da sociedade civil etc.) que cuidam do assunto? O artigo em questão mais parece um parágrafo de uma carta de intenções do que uma lei penal.

O artigo quarto, ao estabelecer os princípios do Sisnad, produz, logo no seu inciso I, uma das maiores pérolas do cinismo nacional, ao garantir o “respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade”. A que “respeito” se refere a lei? Deveria o legislador respeitar, isto sim, a autonomia da pessoa humana na sua escolha pelo uso de drogas, dando-lhe liberdade para usar em seu corpo o que quiser. Deveria ainda o nobre legislador respeitar, acima de tudo, o princípio da lesividade, que não permite a incriminação de condutas que não causem danos a outrem, plenamente vigorante em nosso sistema jurídico-penal, como nos exemplos da prostituição, do suicídio, da autolesão. O inciso II afirma o “respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes”. Trata-se de dispositivo despiciendo, uma vez que o artigo segundo, in fini, já exclui do elenco de drogas proibidas as “plantas de uso estritamente ritualísco-religioso”, como, por exemplo, a ayahuasca. Por fim, o inciso III assegura “a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro, reconhecendo-os como fatores de proteção para (sic) o uso indevido de drogas e outros comportamentos correlacionados”.A primeira parte deste inciso não passa de um discurso ufanista, sem qualquer concretude e nenhuma utilidade; na segunda parte, a ideia do texto está invertida, pois quando a lei diz “... fatores de proteção para o uso...”, ela certamente queria dizer “... fatores de proteção contra o uso...” O errado manejo da preposição “para” inverteu o sentido do texto legal, salvo se admitirmos que o legislador tenha querido dizer que os valores éticos são fatores que protegem o uso de drogas, o que seria uma absurdeza. Aquele que protege auxilia, ajuda. Aqui, o legislador disse exatamente o contrário do queria dizer. Ainda neste inciso, cumpre a seguinte indagação inquietante: a quais “comportamentos correlacionados” refere-se a lei?

Os artigos subsequentes referem-se aos objetivos, à composição e organização do Sisnad, às atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção de usuários e dependentes de drogas e outras firulas demagógicas, ficando reservados para o tratamento dos crimes e das penas – onde reside o escopo repressivo da presente legislação – os tipos compreendidos entre os artigos 27 a 47. Assim é que os artigos28 e 28 parágrafo 1º contemplam as figuras do “uso próprio” e do cultivo de “pequena quantidade para uso pessoal”, com penas de advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa, que são punições mais brandas que as aplicadas às contravenções, podendo, portanto, ser classificadas como “delitos de mínimo potencial ofensivo”, em contraposição à penalidade do art. 33, que define o crime de tráfico de drogas, com pena de reclusão de 5 a 15 anos, que pode ser classificado como “delito de máximo potencial ofensivo”.

Apesar da diferença abissal entre as penas dos dois tipos penais (uso pessoal e tráfico) – que nas descrições de suas condutas objetivas já compartilham cinco verbos (adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e trazer consigo), ampliando com isso a possibilidade de confusão entre delitos punidos tão diferentemente – a distinção entre eles é aferida a partir de critérios claramente subjetivos e preconceituosos, comprometendo sobremodo a segurança jurídica e as liberdades individuais. Com efeito, o art. 28, parágrafo segundo, assim determina: “Para distinção entre tráfico e uso o juiz atenderá às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Neste particular, os negros e os pobres serão sempre prejudicados, sem contar o mesmo prejuízo que pode ser causado a qualquer um por conta dos humores ou intenções da autoridade de plantão. Ivan Luís Marques da Silva, mestrando da USP, assim descreve o périplo daquele que é apanhado com drogas: “O detido é encaminhado ao Distrito Policial próximo e começa o jogo ideológico e quantitativo: 1ª hipótese: A autoridade policial descriminaliza pelo princípio da bagatela; 2ª hipótese: A autoridade policial lavra termo circunstanciado e transação penal; 3ª hipótese: A autoridade policial, cansada da violência no bairro e para dar exemplo à comunidade, prende por tráfico. Tudo depende do conteúdo ideológico da autoridade competente” (28).

Parece, contudo, inegável que a lei vigente (L. 11343/06), em comparação com a lei anterior (L. 6368/76), produziu certo avanço, considerando-se como tal o feixe dos novos dispositivos que possibilitam a redução do poder punitivo, como, por exemplo, o abrandamento da pena para o porte ou plantio para uso pessoal e, em tais casos, a expressa vedação de prisão em flagrante ou mesmo de simples detenção (art. 48, §§ 2º e 3º), a circunstância do uso compartilhado (art. 33, § 3º), a exclusão do conceito de droga das plantas de uso ritualístico-religioso (art. 2º).

Entretanto, para conferir essas migalhas de liberdade, mais destinadas aos jovens da classe média para cima, o legislador houve por bem agravar a pena para o tráfico, alcançando exatamente os jovens dos morros e das periferias, ligados à estrutura do comércio varejista de drogas, como os “gerentes”, “soldados”, “embaladores”, “olheiros”, “aviões”, “fogueteiros” ou “vapores”. Em artigo precisamente intitulado “Retrocesso Travestido de Avanço”, Cristiano Maronna afirma que: “O abrandamento para o uso é uma cortina de fumaça para o agravamento da punição por tráfico” (29). Trata-se, portanto, de um pequeno avanço que se presta para esconder um grande atraso. Por essa razão o texto legislativo, à época de sua publicação, recebeu da comunidade jurídica o jocoso apelido de “Lei do Posto 9”.

Além do retrocesso ideológico – consubstanciado nas alterações legais que incrementam o poder punitivo e, como corolário, promovem o encarceramento massivo da juventude pobre – a lei vigente comete erros grosseiros que a distanciam, em quilômetros, da boa técnica jurídica. Maria Lúcia Karan, em trabalho intitulado “A Lei 11343/06 e os Repetidos Danos do Proibicionismo”, assim assevera (30): “A lei viola o princípio da proporcionalidade, pois quem oferece para consumo conjunto se equipara a usuário, mas se não consome e só fornece converte-se em traficante (33, p. 3º)”. Esta aberração, que tanto abala a segurança jurídica, já foi identificada e enquadrada por Salo de Carvalho no grupo dos chamados “vazios de legalidade”, que, aliados às “dobras de legalidade” (31) , constituem defeitos crassos que comprometem a logicidade da lei.

 

VIII – Bibliografia e notas:

1.Rosa Del Omo, A Face Oculta das Drogas, tradução de Teresa

Ottoni, Editora Revan, RJ, 1990;

2.a. Joel Rufino dos Santos: “A arte, a religião, o amor, a magia, a droga, a literatura não por acaso têm algo em comum: estão presentes no plano anterior da existência como aventura existencial ” (Quem Ama Literatura Não Estuda Literatura; Ed. Rocco, RJ, 2008, página 31);

2.b. Henrique Carneiro: “Nas sociedades pré-capitalistas, tanto no mundo antigo europeu, nos países orientais ou nas culturas ameríndias, o uso do álcool e de outras drogas assumiam papéis sociais centrais nos rituais, na guerra, na devoção, nas atividades xamânicas. Desde a unificação planetária resultante do estabelecimento da dominação européia sobre o mundo, o regime da produção de mercadorias tornou as drogas cada vez mais mercantilizadas, assumindo a forma das commodities” (História das Drogas e Bebidas; Elsevier Editora Ltda., RJ, 2005, página 16);

3. Rosa del Omo; Drogas: Inquietudes e interrogantes ; Ed. Fundación José Félix Ribas, Caracas, 1998, páginas 18, 21, 25, 29 e 34;

4. Jornal “O Globo”, de 12 de março de 2009:“ONU admite fracasso no combate às drogas”;

5. Nereu José Giacomolle: “O secretário de Estado americano, George Shultz, em uma conferência, na Standford Business Scholl , declarou que o programa antidrogas dos EUA é débil e não funcionará, pois é o mesmo da era Nixon e da era Reagan, elaborado por ele” (Análise crítica da problemática das drogas e a L. 11343/06, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, março-abril de 2008, página 181);

6. Otávio Dias de Souza Ferreira: “Militello comentava que a história mostra que é uma ilusão libertar-se apenas um único tipo de entorpecente, pois a incessante busca pelo prazer leva o homem a desenvolver continuamente novas substâncias” (Drogas e direito penal mínimo: análise principiológica da criminalização de substâncias psicoativas, em Revista Brasileira de Ciências Criminais; Editora Revista dos Tribunais, número 75, novembro e dezembro de 2008, página 203);

7. Rosa del Omo:“En el caso concreto de las drogas, este abordaje es factible ya que, en el presente siglo, ha sido Estados Unidos el país que ha ejercido el liderazgo mundial en la preocupación por el fenómeno, y más concretamente por eliminar la producción de otros países (Reuter, 1985: 79). Debe recordarse que fue el gobierno norteamericano el que tomó la iniciativa para convocar y organizar la I Conferencia Internacional conocida como la Comisión del Ópio, reunida em 1909 em la ciudad de Shanghai, China. Desde ese momiento seguiría como actor principal en el escenario internacional para la promulgación de uma serie de tratados y convenios, hasta llegar a la Convención contra el tráfico ilícito de estupefacientes y sustancias psicotrópicas, aprobada en deciembre de 1988, en la ciudad de Viena, Austria”(Drogas: Inquietudes e interrogantes; Ed. Fundación José Félix Ribas, Caracas, 1998, página 73);

8.Otávio Dias de Souza Ferreira: “Segundo critérios biologicistas, costumeiramente considerados como os únicos científicos, é inviável justificar a legalidade do álcool e do tabaco enquanto a maconha é proibida” (Obra citada, página 229);

9.Roberto Lyra Filho:“Houve um retrocesso histórico: a lógica do Direito Penal (não punir a prostituta, mas punir a sua exploração, não punir o frustrado suicida, mas punir o instigador) era seguida em matéria de uso de drogas no Brasil até o advento do DL 385/68, que deu nova redação ao artigo 281, passando a punir o usuário” (Drogas e Criminalidade, artigo publicado na Revista de |Direito Penal, números 21-22);

10. Alexandre Moura Dumans: “Os líderes comunitários têm enorme importância para as largas massas, são seus legítimos representantes e não podem ficar à mercê das agências policiais; carecem de urgentes imunidades, especialmente para suportar as acusações tão em voga de associação e/ou colaboração com o tráfico de drogas, previstas nos artigos 13 e 14 da Lei 6368/76. Apesar de sua previsão legal, o uso desses dispositivos (tipos abertos, de comando vago e impreciso) começa a tornar-se um modismo repressivo gerado a partir do caso ‘Belo’. Antes, tais dispositivos não eram aplicados porque a polícia achava que o Poder Judiciário não habilitaria tal pretensão, louvada apenas no disse-que-disse de populares, de desafetos do indivíduo visado, de gravações descontextualizadas ou de denúncias anônimas, sem apreensão de droga. Mas, a partir do caso ‘Belo’, percebendo que uma parte do Judiciário carioca agasalhara com satisfação e felicidade a idéia, passou a polícia a aplicar os dispositivos de cambulhada, sem os embaraços que implicam a obrigação da prova da materialidade, indispensável no caso de imputação por tráfico ou, até mesmo, pelo simples uso (artigos 12 e 16 da citada lei). Prender por droga sem droga é o mesmo que prender por homicídio sem cadáver, por furto sem res furtiva, por falsidade material sem documento etc. É a liberdade de acusar qualquer um a qualquer tempo sem qualquer motivo. É o paraíso da repressão, que faria inveja a Hitler, Mussolini e seus eventuais seguidores. Nem mesmo as ditaduras militares latino-americanas descobriram tamanha facilidade para operar seus desígnios. É sabido que os fascistas de plantão cuidarão de dizer que os tipos dos artigos 13 e 14 da lei de drogas (associação e/ou colaboração) não exigem materialidade, que são crimes formais, que se consumam com qualquer ato de colaboração. Mas, com certeza, jamais poderão definir em que consistem tais atos de colaboração, sem se perderem em conceitos vagos e preconceituosos. A prisão ou convocação de pessoas por conta dessa espécie de imputação é uma grave ameaça para todos os cidadãos, mais especialmente para as lideranças comunitárias do país, que passam a ficar altamente vulneráveis às intempéries políticas locais, podendo ser abortadas ao gosto e ao tempo das autoridades constituídas, através de simples e, aparentemente, corriqueira atividade policial. É o disfarce de uma covardia; é o uso da instituição policial para suporte de ambições políticas inconfessáveis. Tal expediente, além de espúrio, compromete nossa liberdade política, cuja relevância é assim destacada por Richard Rorty: ‘Se cuidarmos da liberdade política, a verdade e a bondade cuidarão de si mesmas’. No caso de William de Oliveira, presidente da principal associação de moradores da Favela da Rocinha, a pirotecnia policialesca mostrou-se altamente eficaz, pois conseguiu afastar da vida pública – embora temporariamente – um trabalhador, sem qualquer registro policial aos 39 anos de idade, representante legítimo dos moradores da comunidade em que mora desde que nasceu. Outros líderes comunitários, como, por exemplo, a presidente e diretoras da associação de moradores do morro Dona Marta, já foram chamados para ‘esclarecimentos’ em sedes policiais. A situação é grave e possibilita um verdadeiro genocídio de lideranças espontâneas e autênticas das camadas sociais menos favorecidas. E se a moda pega, o preço histórico pode vir a ser muito alto” (Lideranças Comunitárias Ameaçadas; texto publicado no JB de 29 de setembro de 2005);

11. Luciana Boiteux: “Na própria cerimônia de aprovação do texto foi selado o racha entre dois grupos. Um liderado pelos Estados Unidos, favorável a uma linha mais repressiva e dura no combate às drogas. E outro, liderado por europeus, que defendem uma abordagem mais liberal. Por causa das divergências entre esses dois grupos, a declaração virou uma espécie de colcha de retalhos. Num malabarismo de linguagem burocrática, colocou-se um pouco de tudo para satisfazer a todos” (Informe de 19 de março de 2009, às 12h31min);

12.Danny Kushlik: “Every state that signs up the political declaration at this commission recommits the UN to complicity in fighting a catastrophic war on drugs. It is a tragic irony that the UN, so often renowned for peacekeeping, is being used to fight a war that brings untold misery to some of the most marginalized people on Earth. 8000 deaths in Mexico in recent years, the destabilization of Colombia and Afghanistan, continued corruption and instability in the Caribbean and West Africa are testament to the catastrophic impact of a drug control system based upon global prohibition, as it runs counter to the primary impact of the prevailing drug control system which, as the past ten years demonstrate, increases harm” ( Drug War Chronicle, issue 576, de 13 de março de 2009);

13. Rosa del Omo: “Os projetos do presidente Reagan para promover estabilidade política, e econômica, controlar a imigração ilegal e o tráfico de drogas foram afetados pelas contínuas restrições às cotas açucareiras desde 1982. A política norte-americana frente ao açúcar custou à região mais de 130 mil desempregados desde 1984, que não tiveram outro remédio senão converterem-se em imigrantes ilegais ou em cultivadores de maconha para sobreviver. E o que está acontecendo com o café na Colômbia? Esta é a face oculta da droga” (A Face Oculta das Drogas, tradução de Teresa Ottoni, editora Revan, Rio de Janeiro, 1990, página79);

14. Boletim do IBCCrim nº 245, ano 21, abril de 3013;

15. Zygmunt Bauman: “Liberdade, igualdade e fraternidade fizeram o grito de guerra da modernidade. Liberdade, diversidade e tolerância constituem a fórmula do armistício da pós-modernidade. E com a tolerância transformada em solidariedade, o armistício pode mesmo transformar-se em paz” (Modernidade e Ambivalência; Tradução de Marcus Penchel; Jorge Zahar Editor, RJ, 1999, página 110);

16. Francisco Buarque de Holanda: “Não faço apologia das drogas. Mas em países como o nosso, com a droga à solta, barata, na mão de crianças, a violência do narcotráfico produz muito mais vítimas que um hipotético controle de seu comércio e consumo” (Revista “Veja”, de 26 de abril de 2006);

17.Jornal “O Dia”, de 03 de abril de 2006: “Ministro da Cultura, Gilberto Gil, defende a liberação de drogas para combater a venda ilegal e a violência. Assim, ele acredita, o governo pode transformar o que hoje é caso de polícia em problema de saúde pública”;

18.Nelson Motta: Sem pecado acima do Equador, artigo publicado na “Folha de São Paulo” de 17 de junho de 2005;

19.Eliane Cantanhêde: Cega, surda e muda: pobres mulheres presas por tráfico não podem ter o mesmo tratamento que os grandes corruptos , artigo publicado na “Folha de São Paulo” de 14 de agosto de 2001;

20.Marcelo Coelho: Proibição das drogas é obra de drogados , artigo publicado na “Folha de São Paulo” de 08 de dezembro de 1999;

21. Boletim IBCCRIM; Editorial: Drogas: guerra ou paz? ; Ano 16, número 196, março de 2009;

22. Ivette Senise Ferreira, Política Criminal e descriminalização , em Revista do IAB nº 29;

23. Lycurgo de Castro Santos, Tóxicos: Algumas Considerações Penais , em Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 5;

24. Fábio Roque da Silva Araújo, O Princípio da proporcionalidade aplicado ao direito penal: fundamentação constitucional da legitimidade e limitação do poder de punir , em Revista Brasileira de Ciências Criminais, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, número 80, setembro-outubro de 2009, página 35;

25. Nereu José Giacomolli, Análise Critica da Problemática das Drogas e a Lei 11343/06, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, março-abril de 2008;

26. Kai Ambos, Razones del fracaso del combate internacional a las drogas y alternativas , em Revista Brasileira de Ciências Criminais, Editora Revista dos Tribunais, número 41, página 27;

27. Vera Malaguti Batista; Nada de novo no front , artigo publicado na Revista “Ciência Hoje”, de 23 de setembro de 2007;

28. Ivan Luís Marques da Silva (?);

29. Cristiano Ávila Maronna, “Nova Lei de Drogas: Retrocesso Travestido de Avanço”; Boletim IBCCrim, ano 14, nº. 167, outubro de 2006;

30. Maria Lúcia Karam, “A Lei 11343/06 e os Repetidos Danos do Proibicionismo”; Boletim IBCCrim, ano 14, nº. 167, outubro de 2006;

31. Salo de Carvalho: A existência de vazios de legalidade: art. 28, § 2º, que pretende criar parâmetros para distinguir o uso do tráfico; art. 33, caput, que define como tráfico a conduta de “entregar a consumo ou fornecer drogas ainda que gratuitamente”, que se confunde com o uso compartilhado do 33, § 3º. “Se o fornecimento da droga for destinado a uma pessoa que não seja do relacionamento do autor ou, mesmo sendo, não tiver como objetivo o consumo conjunto, haverá incidência do crime equiparado aos hediondos” ( Nas Trincheiras de uma Política Criminal com Derramamento de Sangue: Depoimento sobre os Danos Diretos e Colaterais Provocados pela Guerra às Drogas – Texto avulso apresentado em palestra na EMERJ, em 2013).