Para eludir tal saturação teríamos primeiramente que compreender a questão no marco das funções atuais do sistema penal no capitalismo tardio (globalização), na transformação do Estado-previdenciário em Estado-penal, no poder infinito do mercado e no papel que a política criminal de drogas, capitaneada pelos Estados Unidos, desempenha no processo de criminalização global dos pobres.

O psicanalista Joel Birman afirma que esta pós-modernidade tem como maior metáfora o desamparo no seu sentido mais amplo. A oferta e a demanda por drogas surgem nesse cenário. A psiquiatria e a medicina as oferecem em larga escala, num processo de intensificação performática e medicalização do sofrimento que também atinge os circuitos subterrâneos das drogas ilegais (Psicanálise, negatividade e heterogêneo: como a psicanálise pode ser obstáculo para a barbárie, em Cadernos de Psicanálise, SPCRJ, Rio, 1998, v. 15, n.18). Vivemos numa sociedade que precisa se drogar intensamente, como previra Aldous Huxley. Porque também sem uma cachaça ninguém segura esse rojão.

ParaRosa del Olmo, faz parte da desmistificação ou aproximação crítica ao problema das drogas enquadrá-lo numa perspectiva geopolítica, ou seja, analisando as relações de poder no sistema mundial.

Os Estados Unidos têm sido o eixo central da atual política de drogas no continente e suas marcas de fracasso: multiplicação das áreas de cultivo, organização de traficantes, corrupção de autoridades, crescimento da adição e incremento da criminalidade. Por outro lado, a América Latina tem sido fonte produtora de maconha, cocaína e até de heroína para forte consumo nos Estados Unidos e na Europa. A crise econômica é uma constante na geopolítica desse quadro, com queda de preços de matérias-primas, e com as multidões de camponeses empobrecidos e desempregados urbanos. As novas políticas de ajuste econômico favorecem a expansão dessa produção voltada para o comércio globalizado. Podemos observar: a cada novo “ajuste” corresponde uma nova onda de criminalização e encarceramento (Geopolítica de las Drogas, em Analisis, Medellín, 1998).

Paralelamente a este processo econômico, os governos dos Estados Unidos, a partir dos anos 80, utilizam o “combate às drogas” como ponto central da política norte-americana no continente. Passam a difundir termos como “narcoguerrilha” e “narcoterrorismo”, numa clara simbiose dos seus “inimigos externos”. As drogas passam a ser o móbil das políticas de segurança nacional nos países atrelados a Washington, ao mesmo tempo em que o capital financeiro e a nova divisão internacional do trabalho obrigam tais países a serem os produtores da valiosa mercadoria. Os países andinos se transformam em campos de batalha e nossas cidades se transformam em mercados brutalizados para o varejo residual das drogas ilícitas.

Outro ponto importante para a desconstrução do assunto é rompermos o discurso moral que o ronda. Mais moralidade, como mais penalidade, é o trágico equívoco dos discursos hegemônicos sobre a questão da criminalidade, como advertiu o grande criminólogo italiano Massimo Pavarini (O instrutivo caso italiano, em Discursos Sediciosos –Crime, Direito e Sociedade, Rio, 1996, ed. ICC, n. 2). Quando incorporamos a idéia de “cruzada” contra as drogas, introduzindo a combinação de elementos morais e religiosos, estamos exigindo ações sem limites, sem restrições e sem padrões regulativos, como disse Nilo Batista. É ele mesmo quem diz que não há nada mais parecido com a inquisição medieval do que a atual guerra santa contra as drogas, com a figura do “traficante-herege que pretende apossar-se da alma de nossas crianças” (Política criminal com derramamento de sangue, em Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, Rio, 1998, ed. F. Bastos, n. 5/6 e Matrizes Ibéricas do Sistema Penal Brasileiro, Rio, 2000, ed. F. Bastos). E os mortos dessa cruzada têm uma extração social comum: são jovens, negros/índios/árabes e são pobres.

Gostaríamos de comentar duas recentes comunicações que tiveram enorme repercussão no debate sobre drogas no Brasil: o artigo de The Economist e o filme Traffic. Ambas têm um mérito: apontar para a grande falácia das políticas criminais de drogas lideradas pelos Estados Unidos, sendo que o artigo do The Economist frisa a insensatez da descriminalização apenas do consumo. Como criminalizar a venda de um produto indiferentemente consumido? Mas ambos destilam sobre nós o veneno colonial: The Economist de uma forma mais elegante, e Traffic de forma mais grotesca. Tanto um quanto outro atribuem aos países produtores o ethos da corrupção. Não haveria controle da oferta porque países como a Colômbia e México são muito corruptos. Mas as drogas ilegais são distribuídas até o varejo de todas as cidades da Europa e da América do Norte, apesar da “superioridade ética” de suas instituições policiais. A revista inglesa afirma ser o varejo feito pelos imigrantes pobres por razões culturais (?) e só complementarmentepor sua dificuldade de acesso ao emprego (para ela, esta seria uma razão secundária). Já o filme Traffic (elogiado no artigo) escancara o olhar preconceituoso sobre nós. No filme, tudo o que é mexicano é corrupto, imoral, anárquico e caótico. Mas não há um só agente americano corrupto. Estão todos na luta contra o mal, alguns equivocados, alguns ingênuos, mas todos bons. Não há cena mais repugnante do que aquela em que o traficante/negro/herege praticamente estupra a jovem branca, loura, linda e indefesa consumidora, filha do czar das drogas. Aquela imagem reproduz a idéia, oriunda da geopolítica das drogas, de que países como a Bolívia seriam os países agressores e os Estados Unidos a vítima inerme. É com este discurso que o aparato bélico-industrial dirigido pelo jovem Bush pretende renovar a sua história de intervenções militares na América Latina, através do acirramento do conflito na Colômbia, com o auxílio luxuoso da mídia e dos governos neoliberais do continente.

A tarefa principal dos que pensamos as questões da criminalidade, das drogas e da violência na periferia do capitalismo é estabelecermos a nossa própria pauta. Nossa reflexão tem que romper com os estereótipos que nos foram conferidos pelo capital vídeo-financeiro, pela mass-midia. Queremos uma nova pauta: novos destinos para a nossa juventude pobre que não sejam a cadeia ou o extermínio; queremos estudar a questão da droga e a criminalização crescente das mulheres; queremos avaliar os efeitos do uso dos herbicidas norte-americanos em nosso meio ambiente; queremos produzir uma reflexão latino-americana com os olhos bolivarianos de Rosa Del Olmo, voltados para nossa realidade, reconstruir os paradigmas oferecendo uma forma radicalmente distinta de definir, estudar e controlar nossos problemas.

Nessa linha, a descriminalização do uso e do comércio de drogas é a vitória da verdade sobre a hipocrisia. A União Européia de Monitoramento de Drogas afirma que 45 milhões de seus cidadãos experimentaram maconha ao menos uma vez e 15 milhões fizeram uso nos últimos doze meses (Time, 27.ago.01, p. 18). Quando 45 milhões de pessoas - apenas na Europa - violam a lei, a legitimidade desta lei está questionada.

Atualmente - afora países que já promoveram completa descriminalização, a exemplo de Holanda, Dinamarca e outros - em nações como Alemanha e França, o uso de drogas, malgrado subsista como crime, vem sendo tolerado pelas autoridades; a Bélgica, recentemente, apresentou proposta de somente punir o usuário quando ele se tornar "problemático"; a Espanha, há muito, não processa usuário de qualquer espécie de droga ilícita, desde que a consuma reservadamente; Portugal, em meados do ano passado, descriminalizou o uso de drogas, impondo ao usuário o pagamento de multa ou prestação de serviço comunitário, mas nunca a prisão; na Inglaterra, Peter Lilley, líder do partido conservador, propôs a concessão de licença para venda de maconha em lojas especializadas; no Canadá, onde a Real Polícia Montada já tolerava, expressamente, o porte de pequena quantidade de droga, o Regulamento sobre o acesso à maconha para finalidades médicas decorreu da declaração de inconstitucionalidade da interdição da cannabis sativa na lei de drogas, pela Corte de Apelação de Ontário; no Brasil, a recente lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001, passou a considerar o uso de drogas "delito de pequeno potencial ofensivo", cujos infratores já não serão submetidos à prisão em flagrante.

A digressão acima se presta apenas para demonstrar que a descriminalização do uso e do comércio de drogas é medida que está em curso em inúmeros países. Afinal, tal espécie de incriminação violenta o princípio ilustrado da lesividade, segundo o qual não cabe criminalizar condutas que não produzam lesão a algum bem jurídico ou que lesionem apenas o próprio agente. O indivíduo deve ser soberano sobre seu corpo e sua mente. A idéia de risco à saúde é hoje um argumento vetusto e, neste particular, caminha bem o texto de The Economist, que assegura não haver diferença entre injetar uma dose de heroína e escalar uma montanha. Ambos os comportamentos apresentam riscos e devem, sem embargo da preocupação de seguradoras e de mães, ser tolerados pelo Estado de direito democrático.

Parece claro que o banditismo do tráfico local de drogas no Brasil é apenas uma versão tardia e pobre do banditismo do tráfico de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos dos anos 30. Essa enfadonha repetição traz desgraçadas conseqüências, especialmente para aqueles que habitam os morros e as periferias das cidades brasileiras, sempre qualificados como traficantes quando surpreendidos com qualquer quantidade de droga, diversamente do jovem "do asfalto", que será considerado apenas usuário, objeto do lado brando da lei.

É exatamente esse tratamento diferenciado que compromete qualquer política de drogas. À indiferença penal quanto ao uso deve corresponder a indiferença penal quanto ao comércio. De nada vale a liberação do uso se a criminalização do tráfico for mantida, pois é através das ambigüidades conceituais que se apresentam na aplicação desta última que as agências policiais manipulam a classificação usuário/traficante, operando assim, como diz Zaffaroni, a “seleção no âmbito da criminalização secundária", ou seja, permite-se que tais agências reservem o cárcere para negros, desempregados e pobres em geral. Na prática, a classificação seletiva pode representar quase uma autorização policial para matar; quando a execução se antecipa à investigação, a oportuna classificação post mortem subtrai o interesse do caso, como nas centenas de pequenas notas das páginas vermelhas (“Três traficantes morreram ontem...”).

A recente discussão sobre a nova lei de drogas caminha a passos largos para o passado. Quando se fala em descriminalizar, o máximo a que se chega é a um ponto de vista do qual não compartilhamos: aquele que legisla a partir de certos redutos eleitorais, de jovens consumidores de classe média e alta. Em pesquisa feita nos arquivos do antigo Juizado de Menores do Rio de Janeiro, constatáramos que a juventude de classe média e alta já conta com mecanismos privados de descriminalização (cf. Vera Malaguti Batista, Difíceis Ganhos Fáceis – drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro, Rio, 1999, ed. F.Bastos). Os projetos de descriminalização do usuário deixam ainda mais expostas à demonização as principais vítimas dos efeitos perversos da exclusão globalizada: a juventude pobre de nossas cidades, recrutada pelo mercado ilegal conjugado à falta de oportunidades imposta pelo modelo econômico ao qual estamos submetidos.

O amplo apoio que a atual política criminal de drogas recebe das oligarquias brasileiras, e dos “especialistas” a seu serviço, provém muito mais da fantástica alavancagem de controle social penal sobre os marginalizados pelo empreendimento neoliberal do que de qualquer resultado prático reconduzível ao quadro da saúde pública: sua força está em favorecer a violência e a morte, não a higidez e a vida. É lamentável que algo tão evidente seja diariamente mistificado; porém também aqui, a exemplo de tantos outros tópicos criminológicos, tal mistificação é muito útil, como Rosa del Olmo advertiu.

(*) Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Membro do Instituto Carioca de Criminologia

(**) Mestra em História, pela Universidade Federal Fluminense e Membro do Instituto Carioca de Criminologia