PG: Quando e como começa essa história de combate às drogas?
AMD: Em 1961, com a Convenção Única para Estupefacientes, ratificada por mais de cem países, quando grassava pelo mundo a idéia de um possível “Pacto de Pequim”, pelo qual a China estaria envenenando o Ocidente com heroína. E a América Latina, como grande produtora, foi também alcançada pela sanha persecutória deflagrada contra as drogas. Na verdade, a motivação foi outra, assim declinada por Nils Christie: “Com o fim da guerra fria, num quadro de profunda recessão econômica, no qual as nações industrializadas deixam de ter inimigos externos contra os quais se mobilizar, não parece improvável que a guerra contra inimigos internos seja priorizada”. De qualquer modo, em 1973, o Congresso americano do norte constituiu uma comissão de parlamentares, que percorreu o território latino-americano, após divididir-se em quatro subcomissões assim denominadas: “Prevenção”, “Tratamento”, “Reabilitação” e “Fiscalização e Repressão”. Observe-se que nossa legislação (Lei 6368/76) restou, curiosamente, dividida sob esses mesmos quatro títulos, deixando, com isso, o rastro de sua macaquice. Ao caráter dependente da política nacional sobre drogas, agregou-se a falta de originalidade da legislação.
PG: E qual foi a conseqüência dessa mistura?
AMD: O desastre que já está posto em matéria de racionalidade penal. Para ilustrar a crítica, trago à colação o seguinte exemplo: compare-se a situação de quem passa um cigarro de maconha para um colega, cometendo, ipsu facto, o crime de tráfico, com a situação de outro que mata um colega, perpetrando o crime de homicídio simples. No primeiro caso (tráfico), o agente deverá cumprir a pena mínima de três anos de reclusão em regime fechado, por força da lei dos crimes hediondos; enquanto na segunda hipótese (homicídio), o agente, embora sofrendo a condenação igualmente mínima de seis anos de reclusão, terá direito à progressão para o regime semi-aberto após o cumprimento de um sexto da pena, ou seja, um ano. Verifica-se que o “traficante” cumprirá uma pena privativa de liberdade três vezes superior à do homicida, como se a saúde pública – bem jurídico tutelado no crime de tráfico – fosse mais importante que a vida – bem jurídico mais valioso em todos os sistemas penais do mundo em todos os tempos. Decididamente isso não faz sentido. Bate de frente com o princípio da proporcionalidade.
PG: Mas qual é, exatamente, a distinção entre traficante e usuário, especialmente considerando a diferença abissal entre as respectivas punições?
AMD: A lei estabelece a distinção a contrário senso, ou seja, será considerado traficante todo aquele que estiver portando substância entorpecente que não seja para uso próprio. A espécie de imputação (tráfico ou uso) será definida pela autoridade policial na ocasião da lavratura do flagrante, levando em conta a quantidade de droga, a condição social do agente e as circunstâncias da apreensão.
PG: Podem esses critérios, assim meio vagos, dar azo a equívocos, tais como traficante ser condenado como usuário, usuário como traficante, simples experimentador como traficante etc.?
AMD: Com certeza. Se a legislação não tem racionalidade, a sua aplicação resulta num desastre social, que lota presídios e traz desgraça para a vida de pessoas que tiveram a desventura de serem surpreendidas com droga para uso pessoal ou mesmo para compartilhar com amigos e foram presas ou condenadas por tráfico; bem como para os jovens das favelas e periferias sistematicamente apontados como “aviões” e “olheiros” e condenados como traficantes. É uma desgraça democrática, que alcança ricos e pobres, evidentemente em medidas bem diferentes.
PG: Qual o conceito de droga?
AMD: É uma substância que injetada em um animal produz uma pesquisa. Na dicção da Organização Mundial de Saúde é toda substância que, introduzida em um organismo vivo, pode modificar uma ou mais funções deste. É um conceito intencionalmente amplo, pois abarca não apenas os medicamentos destinados ao tratamento de enfermos, mas também outras substâncias ativas sobre o ponto de vista farmacológico.
PG: Nesse sentido o álcool e o tabaco também são drogas. Como se opera essa distinção?
AMD: Trata-se de distinção meramente legal, sem conteúdo científico. Se a substância estiver incluída na relação, elaborada pelo governo, como droga proibida, seu uso ou comércio será passível de punição. Houve um pequeno período em que o tricloroetileno (princípio ativo da chamada “lança-perfume”) deixou de constar dessa relação por simples esquecimento dos burocratas de plantão e isso impediu a punição dos que foram apanhados usando ou comercializando o produto nesse interregno. A defecção foi preenchida na tabela subseqüente O carnaval daquele ano certamente foi mais animado e mais saudosista.
PG: Qual a relação entre tráfico de drogas e cultura?
É no seu entorno que se forja, atualmente, a contracultura nacional, fundada na idéia do crime (especialmente o tráfico, o roubo e o homicídio) como ofício valente, nobre e rentável. Sai de cena o alinhado malandro de terno branco para dar lugar ao traficante “dono do pedaço”. O crime de tráfico de drogas não tem conteúdo infamante nos morros e nas periferias, de modo que seus agentes não sofrem uma reprovação moral da comunidade em que atuam, onde são vistos como comerciantes e, muitas vezes, como heróis.
PG: Qual a relação entre o tráfico de drogas e violência?
AMD: O caráter clandestino de sua comercialização leva seus agentes à utilização de práticas violentas para guarda da mercadoria, disputa de pontos e confronto com a polícia. A violência é corolário da proibição. O gangsterismo na América do Norte acabou com o fim da lei seca e não com a proficiência das polícias ou com o recrudescimento da legislação penal. Não aprendemos com o passado. Parece que gostamos mesmo é de violência. Tarantino tem razão.
PG: E o caso “Belo”?
Parece-me uma grande injustiça, uma nódoa na história do judiciário brasileiro. O tempo confirmará esse diagnóstico. As gravações davam conta de que ele queria comprar uma arma com um suposto traficante. Trata-se de simples ato preparatório, não punível por força do artigo 31 do Código Penal. Parece estranho que se justifique uma condenação pelo simples contato com um suposto traficante (ainda que para tratar de uma ação comercial ilícita, como,in casu, a compra de uma arma), como se ele fosse portador de uma moléstia grave transmissível pelo simples contato. Assim eram tratadas as mulheres acusadas de bruxaria no período inquisitorial.
PG: Mas existe o crime de associação ao tráfico na lei?
AMD: Sim, é o art. 14 da Lei 6368/76, in verbis: “Associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos artigos 12 e 13 desta Lei: Pena – reclusão de 3 a 10 anos, e pagamento de 50 a 360 dias-multa”. A criminalização secundária, ou seja, a persecução empreendida pela agência policial com relação a essa específica modalidade de crime (associação para o tráfico de drogas), somente se intensificou após a condenação do cantor de pagode. Antes, a polícia tinha o pudor, talvez vergonha, de formular tal acusação. Com o precedente do caso Belo, desencadearam-se inúmeras imputações nesse sentido. Esse movimento veio ao encontro dos ideais mais repressivos porque facilita sobremodo a prisão de qualquer um, sem os embaraços da imputação por tráfico (arts. 12 ou 13 da Lei 6368/76), na qual se exige a prova da materialidade, consubstanciada na apreensão da substância entorpecente. Na hipótese do crime de associação, a polícia não precisa apreender nada, basta uma duvidosa gravação com um suposto traficante, o depoimento de um desafeto ou a suspeita de uma autoridade para que se entenda justificada a persecução penal.
É como um homicídio sem cadáver, um furto se res furtiva, uma falsidade material sem documento etc.
PG: Como fazer para impedir a progressão dessa nova onda de acusações?
AMD: Torcer para que a burguesia americana do norte compreenda que seu inimigo interno não é a droga, mas sim as vetustas razões que sempre atormentaram a natureza humana: a cobiça, o ódio, o ciúme etc. Neste sentido, faço minha a indagação do psiquiatra francês Claude Olivenesnstein: “Por que falamos tanto de droga, quando enormes problemas de injustiça e de morte muito mais importantes invadem o mundo?”.
PG: E nós, latino-americanos, nada podemos fazer?
AMD: Podemos estabelecer uma política independente, que descriminalize o uso de drogas e regulamente seu comércio. Isso é um desafio que pode comprometer a soberania dos países latino-americanos que assim procedam. A Europa, além de sua bagagem histórica milenar, possui uma independência econômica que lhe permite contrariar um aspecto pontual da política norte-americana, sem implicar uma intervenção militar. A despeito dessa latente ameaça, parece-me mais razoável a desobediência aos ditames do império do que a submissão eterna.