Até as candidaturas de oposição, contundentes quanto ao modelo econômico, não conseguem associá-lo ao modelo de justiça criminal que é característico do neoliberalismo. A classe política prepara-se quando o assunto é política econômica, ciência e tecnologia, saúde pública etc; mas quando se fala de segurança pública, correm todos para a vala do senso comum, para a reprodução do que é martelado pela mídia. E a primeira coisa a fazer para entender o projeto penal do neoliberalismo é compreender que a mídia, hoje, não é mera cronista do assunto, mas sim seu principal protagonista.

Em sua última conferência, Pierre Bourdieu afirmava que se há dez anos tinha-se a impressão de que esta configuração do capitalismo tardio produzia índices crescentes de violência e criminalização, hoje isso pode ser estatisticamente comprovado em todos os países que incorporaram o consenso de Washington e suas políticas criminais. O desmonte do Estado Previdenciário abriu caminho para a construção de um gigantesco Estado Penal, como demonstrado por Loïc Wacquant ao analisar a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Ele comprova o deslocamento da população desassistida pela destruição dos programas sociais e sua realocação no sistema penitenciário. As clientela deste sistema penal são os inimigos cômodos, afroamericanos e hispânicos na América, árabes e africanos na Europa, camponeses pobres e favelados na América Latina.

O ponto principal não é que a miséria produza criminalidade, mas que a miséria esteja sendo criminalizada e brutalizada para sua neutralização política. Se o sistema penal da industrialização impunha a disciplina do trabalho, o sistema penal do neoliberalismo tem que impor a disciplina do desemprego. É prisão ou cova, como afirma o lepenismo tupiniquim.

A atual “guerra contra as drogas” cai como uma luva neste cenário. Como política econômica imposta pelos Estados Unidos, ela fracassa em tudo o que se propõe combater: produção, distribuição, dependência química, violência e corrupção; mas é funcional ao produzir um gigantesco processo de criminalização da juventude pobre, criando medo, desesperança e despolitização.

Esses discursos eleitorais têm efeitos muito concretos: eles matam. Matam muito e matam seletivamente: basicamente jovens e pobres. De acordo com o estudo insuspeito de Ignácio Cano, a política mata hoje como nunca matou, e não são operações contra o governo, mas no dia-a-dia da sua atuação. A esquerda light só aparece se o caso tiver repercussão midiática, e de preferência com os holofotes na zona sul. Na bárbara seqüência de execuções dos suspeitos do caso Tim Lopes, as lamentações giram mais em torno das preocupações com a “queima de arquivos” do que as execuções em si. Quanto às execuções, são celebradas pelo silêncio acrítico ou pelas churrascarias, ganhando um caráter de oferenda do governo ao poder midiático ressentido.

Por tais razões é queos políticos em geral - com raríssimas exceções como, por exemplo, Leonel Brizola, Mário Covas e outros pouquíssimos que, neste particular, sempre mantiveram uma posição de vanguarda que a História certamente cuidará de registrar - patinam sobre a mesma geléia quando falam de violência e criminalidade; quase todos acreditam no aumento do poder punitivo estatal para solução do “problema”: criminalização de novas condutas, penas mais graves, restrições das garantias e liberdades individuais e outras medidas não menos sangrentas. Para tanto, usam bordões como “guerra contra o narcotráfico”, “crime organizado”, “lei e ordem”, “lavagem de capital”, “segurança nacional”, “força - tarefa”, “tolerância zero”, “mãos limpas”, “banda podre”, “poder paralelo”, “escritório do crime” e outras tantas expressões, desprovidas de qualquer conteúdo teórico e sem direção política claramente definida.

. Ouvimos em alta freqüência a algazarra dos bufões, exagerando nos gestos e brandindo raivosamente palavras de ordem mais ou menos nos termos seguintes: “Agora devemos dar um basta nisso; a violência está insuportável...” (são os agressivos) ou “O governo não vai mais admitir essa situação e já liberou recursos na ordem de tantos milhões...” (são os falaciosos) ou “A sociedade deve colaborar; é dever de todo cidadão...” (são os comunitários) ou “Basta! Chega de teoria; devemos vencer a guerra contra o crime já” (são os práticos) e outras inúmeras manifestações burlescas.

A esse esforço retórico, ditos políticos agregam as seus discursos iniciativas práticas, que podem ser resumidas aos itens seguintes: unificação das polícias, concurso das forças armadas na repressão à criminalidade civil, aquisição de mais carros e armas para patrulhamento, construção de mais presídios, ampliação e melhoria salarial do quadro civil e militar, aprimoramento da polícia técnica, mapeamento terrestre através de esquadrilhas de balões-olheiros e outras fórmulas menos festejadas. São providências dispersas destinadas a uma repressão seletiva da criminalidade e sem ligação orgânica com a estrutura política, econômica, social e cultural do país; tais providências não obedecem a uma orientação doutrinária criminológica ou penal atualizada, nem se conectam a um projeto claro de política criminal. São ações voluntaristas, guiadas pelo oportunismo eleitoral de cada conjuntura, sem, ao menos, a necessária continuidade que lhes poderia emprestar alguma eficiência no varejo. O pior é que o cenário se repete a cada dois anos. Qual será o tom da próxima campanha eleitoral?

Será que grande parte da população insatisfeita com o modelo econômico não estaria ávida por um outro discurso penal? Os que ousaram romper com esse coro uníssono e macabro, os que tentaram construir na cidade uma estética diferente da estética da escravidão experimentaram um copo de cólera, um cálice cheio de amargura. A história nos absolverá.