Entretanto, a despeito da identidade das funções, o advogado liberal – exatamente aquele que mais expressa a independência da advocacia, diferentemente dos advogados públicos (defensor e promotor) - sempre sofreu toda sorte de achincalhe, especialmente o criminalista, que, por força de uma associação mental primária, é envolvido pelo público na imputação que pese sobre seu cliente. Se ele patrocina a defesa de alguém por conta da acusação de tráfico de drogas, é traficante; de estupro, é tarado; e assim por diante.

A advocacia criminal - mesmo quando exercida dentro dos mais altos padrões éticos - é mal compreendida pela sociedade. A leitura pedestre que dela se faz já foi pontuada, desde 1925, pelo Prof. Enrico Altavilla, da Universidade de Nápoles, em sua obra “Psicologia Judiciária” (1), nos seguintes termos: “A profissão de advogado penal é rodeada por um sentimento de admiração velado por certo menosprezo. Reconhece-se que ela é expressão de agilidade intelectual pouco comum, mas entrevê-se, ou julga-se entrever nela, uma inferioridade ética e uma missão socialmente perniciosa.”. Vê-se, pois, que essa equivocada impressão do público em relação ao advogado criminal é antiga e decorre de natural e compreensível ignorância popular.

Poucos sabem que a ética do advogado penal difere da dos demais advogados, como se nota com a simples leitura do art. 21, do Código de Ética, parte integrante do Estatuto da OAB (Lei 8906/94), in verbis: “É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado”. Portanto, o advogado penal não pode, sob pena de praticar uma infração ética, recusar uma causa criminal em razão de sua imoralidade, ilegalidade ou injustiça. Isso não significa que o advogado tenha que sustentar a inocência daquele que sabe ser culpado.

É comum o cliente mentir para o advogado. Neste aspecto, merece destaque a lição de Maurice Garçon, expressada em sua clássica obra “O Advogado e a Moral” (2), onde assim afirma: “Em geral é raro que um litigante diga a verdade ao advogado. As mais das vezes adota o sistema da meia verdade, constrói uma defesa que o favoreça, mistura certa porção de verdade com a massa da mentira e é esta mistela que ele apresenta ao advogado pedindo-lhe para, servindo-se dela, organizar a defesa”. Mas o advogado não pode pleitear contra a verdade e assim continua o célebre tratadista francês: “Seria algo fraudulento sustentar em juízo a inocência do acusado quando o advogado tem conhecimento da sua culpabilidade. Se o cliente persiste na atitude negatória e quer forçar o advogado a secundá-lo, a solução é uma só: renunciar à defesa”.

Na relação com jornalistas, ainda Maurice Garçon (2), lembra que “a ânsia de publicidade é inimiga do escrúpulo ... o advogado deve abster-se de prestar informações sobre os processos em que intervém. A verdadeira reputação forja-se no tribunal. A sua honestidade, a sua independência e a sua moderação – que não exclui a firmeza – devem estar acima de toda suspeita; a sua autoridade será tanto maior quanto menos pasto der à crítica”.

Afinal, não devemos esquecer que advocacia e jornalismo são profissões com deveres opostos. Entretanto, o advogado pode recorrer à imprensa para defender um princípio que entenda tenha sido violado, sem o propósito de fazer reclame da sua pessoa, o que seria indigno da toga que enverga” (p. 134). Neste espaço, portanto, caberia, por exemplo, brevíssima digressão sobre os princípios violados na operação “Lava Jato” (4), sem mencionar pessoas ou provas.

Importa, ainda, dizer que o advogado penal não é um artífice da mentira; sua função é elaborar uma tese defensiva ou acusatória, escolhendo, dentre fatos verdadeiros, aqueles que mais se compatibilizam com a ideia que sustenta. Assim, por exemplo, se um advogado adota a tese do estado de necessidade para defesa de um furto famélico, cumpre a ele, por dever de ofício, arregimentar as provas que demonstrem a pobreza do agente: seu baixo salário, sua residência modesta, suas dívidas etc.

A advocacia penal sofre uma corrosão ontológica decorrente da própria natureza humana, assim expressada por Francesco Carnelutti: “A figura do advogado é uma das mais polêmicas da sociedade, para não dizer a mais desgastada. A aversão aos advogados não passa de uma indisposição contra a parcialidade do ser humano. Os advogados carregam a cruz dos outros, esta é sua nobreza ... O que simboliza a experiência do advogado é a humilhação. O advogado compartilha com o acusado a necessidade de pedir, de ser julgado, de se sujeitar ao juiz ... e justamente por isso, o exercício da advocacia é uma experiência espiritualmente saudável”.

Essa especialização deveria ser melhor compreendida pela sociedade, mas reconheço que tal desiderato jamais se realizará na sua plenitude. Contudo, é importante destacar os esforços empreendidos pela OAB para implementação e regulamentação da chamada “Investigação Defensiva”, seja por meio da sugestão de anteprojeto de lei que altera a legislação processual penal para aprimorar as prerrogativas da advocacia, seja pela edição do Provimento 188/2018/CFOAB.

Por enquanto, sobra ao advogado criminal usar a beca como escudo para se defender das aleivosias contra ele assacadas e jamais esperar os aplausos de uma plateia pouco informada sobre o assunto. E quando algum membro dessa mesma plateia precisar de um advogado penal, ele vai perceber como é confortável encontrar um profissional destemido e apetrechado para operar uma boa defesa, e não um julgador precipitado, um carrasco vestido de defensor.

Bibliografia:

1. Enrico Altavilla, “Psicologia Judiciária”, Editora, data da publicação e página citada ;

2. Maurice Garçon, “O Advogado e a Moral”, Editora, data da publicação , páginas 29, 30, 10 e 134;

3. Francesco Carnelutti, “As Misérias do Processo Penal”, Editora, data da publicação , páginas 63 e 39;

4. Operação “Lava Jato”. Princípios violados:

a. Nomeação: mostra a seletividade e revela o interesse midiático;

b. Judex ne procedat ex ofitio;

c. Competência (locus delicti commissi);

d. Ampla defesa (advogados sem vista do ip) = abuso de autoridade: L.4898/65, art. 3o., j ;

e. Violação de sigilo funcional qualificado – 325, parágrafo segundo, CP; pena: r. 2/6 anos e multa, supostamente perpetrado pela AJ, MPF ou APF, na modalidade continuada (71 CP);

f. Prisão preventiva de absolvido;

g. Prisão preventiva por engano;

h. Prisão preventiva desnecessária;

i. Prisão preventiva para obtenção de confissão (delação premiada: Quee’s Evidence ou State’s Evidence/antiga “chamada de corréu) = tortura psicológica;

j. Conduções coercitivas sem prévia intimação: abuso de poder (350, parágrafo IV, CP, que não foi revogado pela L. 4898/65);

k. Delegada Erika: morte reitor.

II - Maxiprocessos ou Megaprocessos (definições)

1. Luigi Ferrajoli: gigantismo processual, confusão processual, inovação nos meios instrutórios, uso da mídia e rompimento com a legalidade penal.

2. AMD: número elevado de acusados, número elevado de imputações, extensão e complexidade probatória.

3. Lenio Streck: construção fraudulenta do raciocínio jurídico para perseguir fins politicamente orientados.

4. NB sobre a questão da competência na Lava Jato: “Advocacia em Tempos Sombrios”.

5. Exemplos: Operação Mãos Limpas, Mensalão, Lava Jato, Inquérito das Fake News no STF.

6. Origens históricas: Itália 1970-1980: práticas judiciárias de exceção, louvadas na emergência, consistentes em limitações à defesa técnica, causada pela elefantíase processual.

7. Litigância satélite: exigência de medidas administrativas ou judiciais (certidões, mandados de segurança etc.) para viabilizar a produção de prova defensiva.

8. Alto custo dos honorários x bloqueio de bens.

9. Lawfare ( law = lei + warfare = guerra)

a. John Carlson, 1975;

b. Charles Dunlap (Cel. americano): norma jurídica = arma;

c. Orde Kittrie, 2016 (Prof. Americano): Law as a weapon of war;

d. Instrumento de perseguição do inimigo, uso das leis como instrumento de combate a um oponente, desrespeitando os procedimentos legais e os direitos do inimigo que se pretende eliminar.

e. Dimensões:

- Escolha da jurisdição: juízes mais predispostos a aceitar uma determinada tese jurídica;

- Escolha da lei mais contundente contra o inimigo;

- Externalidade: uso da mídia e das redes sociais ( Pesquisas indicam alto percentual de concordância entre opinião publicada e opinião pública) : notícias falsas (fake news), informações incorretas (misinformation), Informações falsas (desinformation);

- Condenações Injustas:

f. Dificuldade de individualização da responsabilidade: mitigação art. 41 CPP; afinal, todos são acusados de pertencerem à mesma Orcrim (L. 12850/13);

g. Culpa por associação (spillover prejudice);

h. Réus de segundo escalão;

i. Condenação com base em delação (snitches) (L. 13964/19);

j. Visão de túnel = fishing expedition.

 

 

 

 

 

 

II. Bibliografia consultada:

a. Diogo Malan, “Megaprocessos e direito de defesa”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, SP; “Advocacia Criminal em Megaprocessos”, Conjur de 22/6/2022

b. Débora de Araújo Amaral Ribeiro, “A Prática do Lawfare Político nos Maxiprocessos e a Imparcialidade Judicial”, dissertação de graduação sob a orientação do Prof. Francisco Ortigão, na FND/UFRJ, RJ, 2020;

c. Lenio Streck;

d. Thiago Bottino;

e. Fernanda Fraga